Por Juan Biazevic
Imagine que um paciente de baixa renda descobre que os tratamentos disponíveis na rede pública de saúde não são capazes de tratar sua doença. O médico que o assiste prescreve outro, afirmando que existem estudos atestando que existe uma alternativa de cura. A questão que se coloca é a seguinte: o paciente pode processar o Estado para o custeio do medicamento fora dos limites estabelecidos pelas políticas públicas? O STF vem enfrentando a questão da judicialização de medicamentos desde a promulgação da Constituição. Recentemente, em setembro de 2024, publicou as teses dos temas 1.2341 e 62, disciplinando a maneira pela qual é possível buscar medicamentos fora das políticas. A análise desses temas é o objeto deste breve artigo.
Na ocasião, o STF firmou claro posicionamento ao determinar que o Judiciário deve adotar uma postura de deferência às decisões tomadas pelo gestor da saúde e de contenção na intervenção sobre a execução das políticas públicas da área. Esse não é um posicionamento recente. De forma mais ampla, o STF já havia, no julgamento do agravo regimental em suspensão de tutela antecipada 175, em 20103, buscado privilegiar, como regra, o que foi planejado pela autoridade administrativa, permitindo a entrega de medicamentos fora da política pública apenas em casos excepcionais. A relevância dos novos temas está no aprofundamento dessas diretrizes, com o desenvolvimento de critérios bastante complexos para autorizar a dispensação de medicamentos não padronizados.
Não farei uma análise completa dos temas. O objetivo é compreender os critérios capazes de solucionar a situação descrita no início. Algumas qualificações devem ser realizadas à hipótese formulada: o paciente possui uma patologia e, por motivos individuais, não reage ou não pode utilizar o medicamento padronizado disponível no SUS; ele recebe prescrição médica de medicamento de alto custo que não está incluído nas políticas públicas, embora tenha registro na Anvisa; o medicamento jamais teve a incorporação ao SUS analisada pela Conitec4; e, finalmente, o paciente não possui capacidade econômica para adquiri-lo com recursos próprios. Eis a pergunta: O que o paciente deve demonstrar, a partir dos recentes julgamentos do STF, para receber o medicamento do Estado?
Medicina baseada em evidências e a opinião do médico assistente
A regra geral estabelecida pelo STF é a de que, independentemente do custo, a ausência de inclusão de medicamento nas listas de dispensação do SUS impede o fornecimento por decisão judicial (tema 6, tese 1). Excepcionalmente, presentes diversas condições, a parte pode postular medicamentos não disponibilizados (tema 6, tese 2). De forma simplificada, dentre outros requisitos, pode-se afirmar que o paciente deve demonstrar que: (1) o medicamento é imprescindível para tratar sua saúde; (2) ele não pode ser substituído por outro padronizado; e (3) existem evidências científicas de que é efetivo e seguro5. Analisar esses requisitos não é algo que se possa fazer dentro do domínio teórico do direito, mas dentro do domínio da saúde. Não vamos solucionar a controvérsia citando princípios jurídicos ou o texto da CF/88, mas buscando evidências científicas de cada um desses predicados.
O STF expressamente determinou que a demonstração dessas circunstâncias deve ser feita com base em critérios de medicina baseada em evidências (MBE), sendo vedada a tomada de decisão fundamentada unicamente na opinião do médico da parte (tema 6, tese 3, ‘a’ e ‘b’). Para compreender o que isso significa, precisamos analisar, ainda que de forma superficial, as características centrais do movimento da MBE e, como consequência, a posição da opinião do médico dentro da hierarquia das evidências científicas.
O movimento da MBE teve início nos anos 1990, buscando discutir, a partir de observações clínicas reais, quais são as evidências disponíveis para determinar que um tratamento é eficaz. A premissa básica do movimento é a ideia de que existe uma conexão íntima entre evidência de alta qualidade e verdade, ou seja, só podemos acreditar que um tratamento é efetivo se existirem pesquisas confiáveis que sustentem essa conclusão6. Em outras palavras, aquilo em que podemos acreditar depende da confiabilidade da evidência disponível, sendo certo que o grau de confiança nessa evidência é determinado pelos processos de produção do conhecimento. A criação de padrões sobre o que conta como evidência traz vantagens, mas também gera um problema. As principais vantagens são a garantia de que o conhecimento será construído por métodos que asseguram resultados confiáveis e, no tratamento dos pacientes, a possibilidade de criar protocolos de atendimento baseados em regras de probabilidade. No entanto, o problema surge justamente nessa última vantagem: nem todas as pessoas reagem aos tratamentos de acordo com a média esperada para a população7.
Os modelos mais populares de hierarquia dividem as evidências, da menos para a mais confiável, na seguinte ordem: opinião de especialista, estudos de caso, estudos observacionais, ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análise. Os pormenores dessas evidências aqui não são pertinentes. Para o argumento, basta destacar que o STF expressamente afirmou que a parte tem o ônus de demonstrar a necessidade do medicamento não incorporado a partir de “evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados, revisão sistemática ou meta-análise” (tema 1.234, tese 4.4). Nesse contexto, qualquer documento emitido pelo médico equivale à opinião de um especialista e, portanto, recebe o menor grau de confiabilidade dentro da hierarquia.
NATJUS – Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário
Se a opinião do médico não é suficiente, qual é a forma exigida para comprovação de que o medicamento não disponibilizado é efetivo e necessário para o tratamento de saúde? Segundo o STF, o magistrado tem o dever de submeter o processo à prévia análise do NATJUS – Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário, sob pena de nulidade da decisão proferida por descumprimento de precedente vinculante. Se não existir NATJUS na respectiva jurisdição, ele deve consultar entidades ou pessoas com expertise técnica na área (tema 6, tese 2, “b”). O NATJUS, com base nos documentos juntados aos autos – inclusive laudo médico descrevendo a patologia, os tratamentos já realizados e a impossibilidade de substituição da medicação por outra padronizada -, fará a análise técnica do pedido formulado, emitindo parecer. A decisão judicial será proferida levando em consideração esse documento.
Não é possível dispensar a participação do NATJUS, por exemplo, trazendo aos autos uma publicação de revisão sistemática em revista científica apoiando a prescrição. A publicação não é autocertificadora da qualidade do estudo, ou seja, a revisão sistemática deve ser analisada por seus próprios méritos metodológicos e não pelo simples fato de ter sido publicada. A ressalva é importante, pois estudo recente apontou a existência de 3.035 revisões sistemáticas publicadas na plataforma PubMed realizadas por um único autor, o que indica que elas devem ter sua metodologia analisada com precaução8. Segundo o mesmo estudo, a complexidade que envolve a realização de revisões sistemáticas não recomenda que elas sejam realizadas por apenas uma pessoa, mas por uma equipe, considerando as diferentes competências envolvidas (expertise clínica, metodológica e estatística)9.
Na hipótese de não existir NATJUS, o juiz deve ouvir especialistas. O STF emprega a expressão entes ou pessoas com “expertise técnica na área”, o que torna legítimo perguntar: qual é a área na qual a entidade ou o profissional devem ter expertise? Imagine que o paciente no nosso exemplo hipotético sofra de uma condição cardíaca. A área de expertise deve ser a cardiologia, a avaliação da metodologia em evidências científicas ou ambas? Um cardiologista sem formação na metodologia do conhecimento científico, ou seja, alguém que não é capaz de distinguir, por exemplo, entre revisões sistemáticas de boa e de má qualidade, certamente não será capaz de cumprir aquilo que foi determinado pelo STF. O profissional adequado, portanto, no mínimo deve ter boa formação em MBE e, se possível, formação em cardiologia. Em um plano ideal, obviamente, ambas as formações são recomendáveis, mas não é possível dispensar a formação metodológica, sob pena de introduzir no processo uma prova baseada, na prática, em uma opinião do especialista. Em outras palavras, embora os médicos sejam especialistas em suas áreas de atuação, nem sempre estão capacitados para realizar análises metodológicas. As habilidades necessárias para esse tipo de estudo não faziam parte dos currículos acadêmicos tradicionais e, mesmo atualmente, estão presentes em poucos programas universitários.
Em suma, o pedido para entrega de medicamento não disponibilizado no SUS depende da comprovação, a partir de evidências científicas de alto nível devidamente constatadas por alguém com capacidade de realizar esse tipo de análise, de que o medicamento é imprescindível para o tratamento da doença, não pode ser substituído por outro padronizado e é efetivo e seguro. Se todos os pressupostos indicados no tema 6 forem comprovados nos autos, o STF permite a procedência do pedido e determina que o magistrado oficie ao Ministério da Saúde para que avalie a incorporação desse medicamento aos programas de atenção farmacológica.
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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.366.243, tema 1.234 de repercussão geral. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, Dje. 19/09/2024.
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 566.471, tema 06 de repercussão geral, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac Min. Gilmar Mendes e Min. Roberto Barroso. Tribunal Pleno, julgado em 21 set. 2024.
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STA 175 AgR. Rel. Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, Dje, 30/04/2010.
4 Note que, dentro dessa ideia geral de deferência administrativa, se a Conitec emitir parecer contrário à incorporação do medicamento ao SUS, não poderá o Judiciário determinar a entrega, exceto se ficar comprovada alguma ilegalidade no processo administrativo, vedada a incursão no mérito do ato administrativo (tema 6, tese 3, alínea ‘a’).
5 Tema 6, tese 2, alíneas ‘c’, ‘d’ e ‘e’. Os demais requisitos são os seguintes: registro na Anvisa; negativa administrativa do fornecimento do medicamento; ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação; e incapacidade financeira de custeio.
6 DJULBEGOVIC, Benjamin; GUYATT, Gordon H.; ASHCROFT, Richard E. Epistemologic Inquiries in Evidence-Based Medicine. Cancer Control, v. 16, n. 2, p. 158-168, abr. 2009.
7 DJULBEGOVIC, Benjamin; GUYATT, Gordon H. Progress in evidence-based medicine: a quarter century on. The Lancet, v. 390, p. 415-423.
8 PACHECO, Rafael Leite. et al. Many systematic reviews with a single author are indexed in PubMed. Journal of Clinical Epidemiology, v. 156, abr. 2023. p. 124-126.
9 Ibid., p. 125.
Fonte: Migalhas